Florencia Guzzetti é argentina e atualmente reside em Porto, Portugal, uma cidade que lhe apaixonou enormemente pelas ruas, o céu, a proximidade com o mar. Estudou Literatura em Buenos Aires e agora pensa sobre a pornografia e a suas relações com os feminismos. Gosta imensamente de ler e escrever e está muito motivada com o desafio de fazê-lo numa outra língua tão linda como é o português.
Eu comecei como quem não sabe
que começa um hábito, uma coisa
que não pode
ser desfeita.
Um dia acordei e parei
de encontrar sentido
em conservar as coisas
e juntar o pó
em algum canto ou pensar
que essas coisas realmente me importam
mesmo que tenha esquecido o porquê.
Eu comecei, acho,
quando deixei a casa da minha mãe
ou talvez antes, quando saí
da casa familiar, essa tão grande
com tanto espaço
para guardar e tão
tão pouco tempo
para desarmar.
Se não voltar à coisa, jogo fora
disse mamãe
ainda ignorante
que naquele dia
ela também estava
exercitando essa arte
mas como falar de arte
nesse estado
de cataclismo, de colapso
como falar de algo
nesses momentos que não sabemos
como ou o que salvar.
Me lembro de não querer
pisar a casa
vazia, desarmada
de dizer joga tudo fora
o importante, acho,
já guardei
já não me importam
os papéis os cadernos
a minha escola
os infinitos brinquedos
órfãos que deixei.
Há quem diga
que o exílio nos faz generosos
nos faz presentear
grana poemas orgasmos
e soltar a ideia
(mais do que um objeto, sabemos,
é uma ideia)
de uma biblioteca imensa
vaidosa, e é real:
entrar na prática
de perder dia a dia
algum objeto, alguma ideia
é terapéutico, mas insisto:
também se trata
de olhar com grandeza
pequenas coisas um caracol
uma pedra
uma casa
em qualquer lugar.
Foto de Leopoldo Cavalcante.